Preciso de fugir. O aqui é desconfortável. Talvez advenha daí a minha força, fico e enfrento o que está a causar-me transtorno. Mas não consigo, o que é, é forte demais e esmaga-me por dentro. Quero fugir para um lugar seguro. Não consigo aguentar. Teimo em viver a vida à superfície, mas quando me afundo em mim percebo que há muito mais que tem de ser processado. Não posso continuar à deriva. O meu corpo quer mergulhar na minha alma, porém não me julgo capaz de nadar contra a maré. Todo este percurso tem sido de descoberta, descoberta de mim. E por isso, preciso de fugir, respirar bem fundo e encontrar-me.
Respostas. Tendência descontrolada para a procura das mesmas. Ingresso em mil caminhos formatados por um ponto de interrogação, mas que desencaminham-se em lado algum. Milhões de perguntas e nada. Nada é real. Subentender a verdade inerente em certos actos que nos constrangem ou que nos constroem. Alma de pedra lapidada. Pedaços de qualquer coisa que vão caindo por terra quando a verdade emerge. Mas a verdade que se julga verdadeira é apenas uma máscara, uma capa para um âmago que nos transcende. Nunca seremos capazes de suportar as respostas que tanto ansiamos. Serão apenas diminuídas no valor que lhes concedemos. Respostas.
guardo-te dos meus segredos
sem medo
de deixar-te cair,
o fundo do meu gesto
é o resto
do espelho quebrado
no chão do meu mundo,
fecho-me em mim
a casa está aberta
o quarto do fundo
espera por amanhã
beija-me sem pudor
arranca-me a roupa
despe-me do calor
que me invade o âmago,
nas pontas dos dedos
Não sei. Pensava-me completa, mas agora olho-me para dentro e vejo que me faltas. As unhas negras de gretar a terra e o tempo, à procura dos teus restos. Já não sei quem sou, ou sei e não quero saber. Não sei. Posso viver sem ti? Não sei. As pestanas colam-se, as costas curvam-se, os punhos cerram-se, eu encolho-me e o resto desfaz-se. Serei apenas cinzas num dia escuro, serei apenas a vontade de voltar atrás, serei apenas uma nódoa negra no teu peito, serei.. Não te posso pedir: volta. Não sei. Não quero. O que sinto sofreu. Deixa-me, a tua sombra não me deixa, serás sempre o fantasma que me assombra, morreste-me. Morreste-me e eu não te pude salvar, não te pude guardar, não te pude proteger.. dentro de mim. Volta. Não voltes. Nada é permanente, tu não és infinito.
E em mim já é noite. Não consigo dormir. O meu corpo anseia por algo que nem de longe nem de perto consigo reconhecer. A imagem nublada que se esbate no meu caminho é demasiado pardacenta. Os contornos não se definem, não me definem. O que acontecer só a mim pertencerá. Só não me quero perder. Tu és pele de mim, e eu não tenho certezas. A metade que é, já não é a metade certa. Sento-me ao meu colo, e só peço que não te percas agora. Estou confusa, deito as mãos à cabeça e reconheço em mim o pássaro livre que sou, que desde que foste embora eu me tornei. A jaula já não é a mim que compete. Sou livre, sou infinita.
Todos os dias são dias. E hoje é um dia de deixar ir. O meu âmago converge em si, sou do tamanho da palma da tua mão, fecha-a, fecha-me. Um dia vais poder abrir os braços, abrir as mãos, deixar-me voar. E eu farei de ti o mesmo. Talvez os movimentos das minhas asas se estejam a tornar repetitivos. Talvez até nem tenha asas. Quero suster-me em mim. Deixo-te ir. Faço figas, rezo baixinho, que o teu caminho não torne a mim, não serei capaz de te mandar de volta, outra vez.
A vida é esquisita. Sou pássaro de mim e sei que o meu canto baixo permanece em ti como o rufar do teu peito permanece em mim. O meu espírito livre não me permite. Vai, vai e não voltes.
Nada vai voltar a ser como antes. Chego cansada por carregar o mundo às costas. Mas reconheço em mim a ferocidade para atacar o destino, tal como ele me ataca quando estou de costas viradas para mim.
Arreganho os dentes, sei que consigo ser mais do que sou, sei que consigo levantar-me quando o sonho de cristal que transporto na concha das minhas mãos se esbate em mil pedaços ao abraçar o chão. E os pedaços são impossíveis de colar, de voltar a reconstruir e nada vai voltar a ser como antes.
Acordo. Cabelo desgrenhado. Passos pesados. A vida cinzenta. Caminho arrasada. Sinto falta do antes. Olho-me ao espelho. "Não te metas comigo".
- Relógio Astrológico, Praga - |
Eu sou o tempo. Escorro pelo parapeito da janela e esbato-me no vidro embaciado da janela do teu quarto. Sabes de cor a minha dança. A minha cintura envolve o gesto pintado que desembainhas por baixo da tua roupa, por baixo do teu ser. A melodia do meu movimento embala o que palpita dentro dessa caixa de pandora. Não desvendes esse segredo. Quero descobrir o chão do meu sonho. Quero descobrir por mim própria cada pedra, cada fresta, cada canteiro, cada poça, cada passo, cada rosto, cada pestana, cada gesto, cada..
Eu sou o tempo. Se precisas de tempo, precisas de mim. Dou-te de mim tudo o que pedires, dou-te o meu tempo, dá-me o teu espaço. Já é hora.
- Óbidos - |
Agarra-me. Não me deixes fugir. Mais um minuto de ânsia e o meu corpo cede. Agarra-me hoje para me teres para sempre. Agarra-me a mão, agarra-me o tempo e sente-me. A força que tens é maior que o mundo. Sou tão pequena, dentro da tua mão. Orgulho. Deixa-te disso quando sabes que o que sentes é eterno, no momento. Deixa-te de teatros, dramas, esquemas envoltos em pedaços de nada. Agarra-me.
Eu precisei de uma pausa de tudo, e agora os planos têm o seu tempo, têm o seu timing. O mundo lá fora parece-me mais promissor, e eu sei que vou viver a minha aventura, vou viver o meu ano, vou viver a minha vida abrançando a seiva de todos os projectos que me estão destinados.
Sem medos, sem rodeios, sem falsas esperanças, vou atirar-me de corpo e alma para esta nova experiência que aí vem. Pode ser fugaz, efémera, escorregadia, mas a verdade é que serei eu própria em busca de mais um pedaço de mim, que está algures perdido em Milão.