corpo

lama

janeiro 24, 2012

Eu escrevo sobre os sentimentos imundos onde ninguém gosta de mexer. As vísceras que fedem de dor, desespero. Sem conectores e frases diminutas, escrevo sobre a podridão. A lama onde os corpos dormentes se enterram, sem vontades, sem vigor. Segredos de fel, caminhos que se afloram nos passos pequenos de uma menina que come chocolate, gulosa. Caminhos que se diluem na secura de um deserto. Terra nas mãos, no corpo. E é nessa imundície que me sinto eu. que conheço o mais profundo de mim. Suja.

joão-de-barro

canção de pássaro

janeiro 23, 2012

É o fim? Tenho um caderno que anda sempre comigo. Aponto palavras, desenhos, riscos, sei lá. Ontem fiz um apontamento importante: João-de-barro. Escrito num traço carregado, este é o nome de um pássaro. Quando a sua companheira morre passa o resto da vida só. Não me morreste, mas foste embora. E eu, fiel, como Maria-de-barro que sou, quero passar o resto da vida só. O meu ninho em forma de forno, criado na direcção contrária à da chuva revelou-se um fracasso. O meu canto de gargalhada silenciou, o tempo está calmo. Não sei quando serei capaz de moldar o barro que me resta, quando serei capaz de esculpir uma tampa para o nosso ninho, encerrando dentro todas as memórias livres como pássaros que um dia fomos.

comboio

ao deus dará II

janeiro 22, 2012

Preciso de fugir. Fugir como tu. Fugiste hoje de manhã e deixaste um beijo perdido na minha cara. Foste embora, eu fiquei quieta encostada à parede da minha casa, a olhar para um vazio qualquer, à espera que olhasses uma última vez e percebesses que eu mereço que tu dês o teu melhor. 
Estou no comboio, sinto o corpo a tremer, acompanha a trepidação dos carris. Pela janela nada do que eu vejo faz sentido. Não queria voltar a sentir-me assim, desamparada.
Cheira mal, a ovas e a iscas em água estagnada.
Estou contente por ter feito uma tatuagem. Era um desejo (e continua a ser) eu ser o livro em branco da minha vida. O meu corpo. Há minha frente está um homem cheio de rugas, lê atento um livro antigo. Levantou-se. Será que já chegámos? Quantos amores teve ele de deixar?

Estou sentada num pontão, em Olhão. Ao longe distingo as silhuetas das gaivotas poisadas no manto de água que se estende. Não há um silêncio certo, as vozes fundem-se nas pequenas golfadas do mar ao bater nas rochas. Uma gargalhada. Quem me dera rir, sentir-me feliz. Que sufoco! Por mais que corra tu acompanhas-me, deixa-me. Quero ser gaivota, quero voar livre e não me apegar a ninguém.
Escrevemos numa folha aquilo que queremos deitar fora das nossas vidas. Amachucámos como se todos os males de que sofremos se fossem embora com aquele pedaço de papel. Atirámos à água. Deixa-me! 
A vida é boa. «É a vida né?», uma brasileira está a falar com um homem, estão a engatar-se. O vento traz as conversas, mas não leva as mágoas, nem as palavras que me disseste. Está frio, tenho fome. Milhões de papéis amachucados terão de ser escritos e atirados ao mar, até conseguir ultrapassar-te. Já senti dores piores, perdas maiores, mas pensei na estabilidade que me deste desde o momento caricato em que te pedi para me levares a fazer xixi.
Desde que te conheço que as coisas vão fazendo sentido aos poucos. Agora é esperar. Não me atiro ao mar porque não sinto desespero, sinto vontade de te abraçar como abracei pela última vez, ontem.
Amo-te, sim, à minha maneira eu amo-te.

aldeia

ao deus dará I

janeiro 22, 2012

Fomos para a estação de comboios de Faro. Eu e o meu companheiro de sempre. Queríamos uma aventura barata, e lá encontrámos um destino chamado Fuseta. A 15 minutos de Faro, o que será isto?
Entrámos no comboio e o D. escorregou nas escadas, bela forma de ir para a Fuseta! Sem sabermos o que é, até dá gosto pronunciar este nome.
Cheira a ração no comboio, vamos de costas para a linha, gente estranha no comboio. Será que a Fuseta é só um lugar perdido cheio de gente estranha?
Vem aí o revisor. Gostava de fazer um livro sobre estes momentos de fuga. E é isso mesmo que a Fuseta é: uma fuga, um sítio ao acaso para onde vamos fugir agora.
Ás vezes é bom, quase sempre é bom quando somos espíritos livres ansiosos por quebrar a rotina e quebrar tudo aquilo que nos envolve. Gosto quando a caneta está solta no papel e eu finjo que a domo com estes pensamentos. Posso não ter continuidade no meu pensamento ou até posso pensar que agora estou bem, posso até ter momentos em que não consigo expressar o que sinto, mas agora estou apenas a desfrutar do resultado de ontem. Agora posso respirar fundo!
Estamos um bocado perdidos, deixamos guiar-nos pelo rumo que o comboio leva porque melhor que nada só ele conhece o verdadeiro sentido dos carris.
Num azulejo meio apagado e que já ali está há quantas vidas pode-se perceber «Olhão» e um dia voltarei a esta estação, também numa tentativa de fuga.
O revisor vem aí outra vez, triste vida esta! Pica milhares de bilhetes o dia inteiro, quantos milhares de caras vê ele todos os dias? Quantas centenas de vezes ele sente atração pelos passageiros? Quantas dezenas de olhos ele olha diariamente? Já deve conhecer o oscilar da carruagem de cor. E já nem deve apreciar as mil paisagens que vê por dia porque simplesmente está farto de vê-las.
Lugar 72 neste comboio rumo à Fuseta, o cheiro a ração já se dissipou ou então foi agarrado àqueles que desceram em «Olhão». Espero que a Fuseta tenha mar, a sério!

andorinha

injusto

janeiro 11, 2012

Às vezes só porque sim. Só porque abro a janela e do outro lado não está nada. Só porque caminho na rua sem ir a lado nenhum. Só porque penso pensamentos vazios. Só porque quero sair daqui, fechar-te a porta na cara e ir, ir para onde for. Só porque não é justo, não é nada justo. 
Eu sei que as palavras aguçadas as uso como eu quero, eu sei que as máscaras que tenho as uso como eu quero, eu sei que eu sou como sou só porque eu quero, e não é justo que venhas e te apoderes de mim, deixando-me à mercê porque no fundo é o que eu quero. Quero que venhas, mas vem para sempre. Não é justo eu estar bem e tu apareceres, escondido entre as asas abertas de uma andorinha que regressa a casa, depois de um longo tempo a proteger-se do frio, do frio que está lá fora. Não é justo, mas eu quero.

amor

olhos

janeiro 02, 2012

Ao m.

o meu maior tesouro
são as esmeraldas 
que os teus olhos guardam
pequenas gotas de ouro
que soam límpidas
nas lágrimas que as afagam
perco-me nessas jóias
recheadas de âmbar e mel
de um verde intenso, cruel
que me rói a pele
cálices de um cristal aguçado
de onde bebo a tua essência
percorre-me por dentro
deixa-me à mercê,
demência.