- Metropolitano de Lisboa - |
- Barragem do Alqueva - |
- Ericeira - |
Quietude. Retrato calado de uma euforia. A imensidão dos passos perde-se pelas paredes do corredor. O toque frio da parede não te aproxima de mim. Rude. Corro eternamente e nunca te apanho. Do lado de lá do arco-íris, do lado de lá da vida. Estou do lado de cá, ainda. Quero fugir. Quero apanhar-te. Serei sempre um retrato histérico da incoerência. Perdi-te, para sempre. Quero fugir. Há dias assim: quietos.
E o tempo corre como se se quisesse abrigar da chuva, levando consigo todos os assuntos pendentes desta vida tão precoce. E fui, com a maior das esperanças de que a chuva lavasse os meus pecados, o sabor ardente que me escorre para a boca quando caminho sem rumo, sentimentos que outrora estavam perdidos lá no fundo do meu ser. E é tempo, eu sinto. É tempo de reajustar as asas para um novo voo. Clamam-se livres, estas novas crias da sociedade. Embriagadas de sentido, ávidas de perdição. São pássaros prematuros sem instrução. Sem intuição. E o tempo corre como se se quisesse abrigar da chuva. E as crias voam debaixo da chuva, molham-se propositadamente porque bradam aos céus a sua liberdade. E nada do que criam parece real, porque não o é. E nada do que sonham parece real, porque não o é. E nada do que são é real, porque são apenas fragmentos transfigurados de uma sociedade que lhes concede um único dom: o de serem o que não são.
Há demónios com os quais não sei como lutar. E os cadernos, as folhas, o branco começa a ser preenchido. E o vazio, aos poucos, torna-se cheio. Cheio de nada, cheio de inutilidades, cheio de vazio. Há demónios que me perseguem. Deixo para trás as histórias que eles protagonizam. Não os apago de mim, não os esqueço, apenas adormento-os no meu peito, num lugar quente, quieto.
Não tenho medo do que vem aí, tenho ansiedade. Vontade. Não tenho medo de abrir os livros empoeirados, com as folhas carcomidas pelo tempo, e descobrir que vinte anos passaram, que uma vida passou, que tantas vidas passaram. Mas que digo eu? Não suporto saber que o tempo passa, que a pele enruga, se amachuca com as pancadas do destino, que o corpo se encaracola para dentro a aninhar-se em si mesmo. Não suporto caminhar lado a lado com os demónios de uma vida, não suporto crescer. Mas tenho tanta vontade de fazer as malas, só mais uma vez, e sair, como saio sempre. Fecho a porta atrás de mim e tudo o que fui permanece fechado, até ao dia em que abro os livros empoeirados, com as folhas carcomidas pelo tempo e sinto que a vida passou. E eu passei com ela.
- Óbidos - |
Falam-me de sonhos irreais, falam-me de vidas incompletas, falam-me de palavras não ditas. São apenas notas que ressoam sozinhas das teclas de um piano abandonado. Brotam vida, brotam silêncio. O piano que abandonaste quando a música calou. No salão os corpos dançam envoltos em si. Abstracto. Abraço. A melodia cortante lateja na garganta. Falam-me de coisas que eu não entendo. Corro. Há coisas que conheço bem. Fujo. Quem me dera abandonar-me ao vento, ao céu. Soltem-me nas teclas que serei capaz de voar. Tocas para mim como quem está a tentar segurar-me. Sabes que sou uma nota solta da tua pauta. Não me agarres, não toques. Abandona o piano tal como eu abandonei-te a ti.
- Jardim do Castelo, Abrantes - |
Hoje era o homem dos patos. O relógio apontava as 3 horas, luminosas, quietas. Lá de cima viemos nós, fervilhantes nas nossas conversas. Embrulhada no frio que estava, sentia a ânsia de descobrir aquele lugar. Um lugar pequeno, não tão pequeno quanto uma aldeia algures no monte, mas pequeno. Um lugar de gentes rústicas, homens de barbaçal negro, impondo a virilidade de chefes de matilha. Mulheres pequenas, debruçadas às janelas, de rugas ao ar e batas domésticas. As mãos sabiam a terra de cor, e os olhos cansados da vida acompanhavam este e aquele forasteiro que por alguma razão ali passava. Hoje era o homem dos patos que lá de cima nós avistámos. Um senhor pacato, calado mas que ao mínimo desenrolar de língua não mais se calava. Queria companhia, e às 3 horas, fossem luminosas ou mais escuras, lá estavam os patos. O barulho do carro já era familiar às mais de cinquenta aves que viviam no Alviela. Uma casa suja, desapropriada, esfomeada. Em fila subiam as margens do rio e chegavam bem perto do homem dos patos, que aos seus olhos de selvagens era apenas o senhor do pão, das migalhas. Sabia-los de cor, ou pela mancha que tinham no peito, ou pela forma do bico ou pela penugem mais acinzentada. Eram os patos de sempre, de uma vida, que o iam deixando aos poucos, talvez em busca de uma casa melhor, talvez pelo cansaço de lutar contra a corrente. Hoje era o homem dos patos.
Sou livre de todas as correntes que um dia me prenderam. Tenho 20 anos e poucos sabem a minha história. Com tudo o que vivi as cicatrizes seriam visíveis à flor da pele, mas a força de leão que jaz no meu corpo, no meu espírito, permite-me dar um passo contrário ao abismo. Talvez a opção mais fácil seja mostrar os pequenos picos cravejados na minha epiderme. Superficial. O que se esconde nas minhas entranhas, o profundo de mim são pequenos segredos raramente revelados. Só às pérolas do meu caminho. Poucas, muito poucas. Tenho orgulho na arte que um dia me criei. Tenho orgulho em mim. Serei sempre incompreensível, um caminho pedroso, incoerente. Um rascunho de alguém. Aos poucos passo-me a limpo. A minha única linha recta são os meus sonhos. Sonhos, que agarro, agarro mesmo, e nunca, nunca distorço. Tenho 20 anos e poucos sabem a minha história.
Eu escrevo sobre os sentimentos imundos onde ninguém gosta de mexer. As vísceras que fedem de dor, desespero. Sem conectores e frases diminutas, escrevo sobre a podridão. A lama onde os corpos dormentes se enterram, sem vontades, sem vigor. Segredos de fel, caminhos que se afloram nos passos pequenos de uma menina que come chocolate, gulosa. Caminhos que se diluem na secura de um deserto. Terra nas mãos, no corpo. E é nessa imundície que me sinto eu. que conheço o mais profundo de mim. Suja.
É o fim? Tenho um caderno que anda sempre comigo. Aponto palavras, desenhos, riscos, sei lá. Ontem fiz um apontamento importante: João-de-barro. Escrito num traço carregado, este é o nome de um pássaro. Quando a sua companheira morre passa o resto da vida só. Não me morreste, mas foste embora. E eu, fiel, como Maria-de-barro que sou, quero passar o resto da vida só. O meu ninho em forma de forno, criado na direcção contrária à da chuva revelou-se um fracasso. O meu canto de gargalhada silenciou, o tempo está calmo. Não sei quando serei capaz de moldar o barro que me resta, quando serei capaz de esculpir uma tampa para o nosso ninho, encerrando dentro todas as memórias livres como pássaros que um dia fomos.
Preciso de fugir. Fugir como tu. Fugiste hoje de manhã e deixaste um beijo perdido na minha cara. Foste embora, eu fiquei quieta encostada à parede da minha casa, a olhar para um vazio qualquer, à espera que olhasses uma última vez e percebesses que eu mereço que tu dês o teu melhor.
Estou no comboio, sinto o corpo a tremer, acompanha a trepidação dos carris. Pela janela nada do que eu vejo faz sentido. Não queria voltar a sentir-me assim, desamparada.
Cheira mal, a ovas e a iscas em água estagnada.
Estou contente por ter feito uma tatuagem. Era um desejo (e continua a ser) eu ser o livro em branco da minha vida. O meu corpo. Há minha frente está um homem cheio de rugas, lê atento um livro antigo. Levantou-se. Será que já chegámos? Quantos amores teve ele de deixar?
Estou sentada num pontão, em Olhão. Ao longe distingo as silhuetas das gaivotas poisadas no manto de água que se estende. Não há um silêncio certo, as vozes fundem-se nas pequenas golfadas do mar ao bater nas rochas. Uma gargalhada. Quem me dera rir, sentir-me feliz. Que sufoco! Por mais que corra tu acompanhas-me, deixa-me. Quero ser gaivota, quero voar livre e não me apegar a ninguém.
Escrevemos numa folha aquilo que queremos deitar fora das nossas vidas. Amachucámos como se todos os males de que sofremos se fossem embora com aquele pedaço de papel. Atirámos à água. Deixa-me!
A vida é boa. «É a vida né?», uma brasileira está a falar com um homem, estão a engatar-se. O vento traz as conversas, mas não leva as mágoas, nem as palavras que me disseste. Está frio, tenho fome. Milhões de papéis amachucados terão de ser escritos e atirados ao mar, até conseguir ultrapassar-te. Já senti dores piores, perdas maiores, mas pensei na estabilidade que me deste desde o momento caricato em que te pedi para me levares a fazer xixi.
Desde que te conheço que as coisas vão fazendo sentido aos poucos. Agora é esperar. Não me atiro ao mar porque não sinto desespero, sinto vontade de te abraçar como abracei pela última vez, ontem.
Amo-te, sim, à minha maneira eu amo-te.
Fomos para a estação de comboios de Faro. Eu e o meu companheiro de sempre. Queríamos uma aventura barata, e lá encontrámos um destino chamado Fuseta. A 15 minutos de Faro, o que será isto?
Entrámos no comboio e o D. escorregou nas escadas, bela forma de ir para a Fuseta! Sem sabermos o que é, até dá gosto pronunciar este nome.
Cheira a ração no comboio, vamos de costas para a linha, gente estranha no comboio. Será que a Fuseta é só um lugar perdido cheio de gente estranha?
Vem aí o revisor. Gostava de fazer um livro sobre estes momentos de fuga. E é isso mesmo que a Fuseta é: uma fuga, um sítio ao acaso para onde vamos fugir agora.
Ás vezes é bom, quase sempre é bom quando somos espíritos livres ansiosos por quebrar a rotina e quebrar tudo aquilo que nos envolve. Gosto quando a caneta está solta no papel e eu finjo que a domo com estes pensamentos. Posso não ter continuidade no meu pensamento ou até posso pensar que agora estou bem, posso até ter momentos em que não consigo expressar o que sinto, mas agora estou apenas a desfrutar do resultado de ontem. Agora posso respirar fundo!
Estamos um bocado perdidos, deixamos guiar-nos pelo rumo que o comboio leva porque melhor que nada só ele conhece o verdadeiro sentido dos carris.
Num azulejo meio apagado e que já ali está há quantas vidas pode-se perceber «Olhão» e um dia voltarei a esta estação, também numa tentativa de fuga.
O revisor vem aí outra vez, triste vida esta! Pica milhares de bilhetes o dia inteiro, quantos milhares de caras vê ele todos os dias? Quantas centenas de vezes ele sente atração pelos passageiros? Quantas dezenas de olhos ele olha diariamente? Já deve conhecer o oscilar da carruagem de cor. E já nem deve apreciar as mil paisagens que vê por dia porque simplesmente está farto de vê-las.
Lugar 72 neste comboio rumo à Fuseta, o cheiro a ração já se dissipou ou então foi agarrado àqueles que desceram em «Olhão». Espero que a Fuseta tenha mar, a sério!
Eu sei que as palavras aguçadas as uso como eu quero, eu sei que as máscaras que tenho as uso como eu quero, eu sei que eu sou como sou só porque eu quero, e não é justo que venhas e te apoderes de mim, deixando-me à mercê porque no fundo é o que eu quero. Quero que venhas, mas vem para sempre. Não é justo eu estar bem e tu apareceres, escondido entre as asas abertas de uma andorinha que regressa a casa, depois de um longo tempo a proteger-se do frio, do frio que está lá fora. Não é justo, mas eu quero.
Ao m.
o meu maior tesouro
são as esmeraldas
que os teus olhos guardam
pequenas gotas de ouro
que soam límpidas
nas lágrimas que as afagam
perco-me nessas jóias
recheadas de âmbar e mel
de um verde intenso, cruel
que me rói a pele
cálices de um cristal aguçado
de onde bebo a tua essência
percorre-me por dentro
deixa-me à mercê,
demência.